A Metafísica do Heroísmo

Por Valdemar Abrantes

 

    
  
     O Heroísmo, do qual aqui trataremos, define-se como uma ação praticada contra todo e qualquer sentido de decadência espiritual. Na Era em que estamos inseridos, o Heroísmo demarca-se então como uma ação efetuada contra o avançar da Kali Yuga, a Idade das Trevas. Consiste em marchar com os estandartes da Tradição contra o fluxo caótico desta idade sombria; interrompendo, num determinado lugar propício e num instante exato, suas influências e, no mesmo movimento conjunto, na mesma ação interligada, forçando o seu recuo.
     Separado deste princípio espiritual ativo o Heroísmo sobrevive somente como uma mera expressão estética, lúdica e cultural, na exaltação de feitos mirabolantes ou surpreendentes, independente do intuito degenerado que tais atos possuam.
     O Heroísmo verdadeiro é o ato superior de uma natureza superior direcionado às alturas celestes. Por isso é a ação própria do Herói. É o princípio transcendente que determina seu estilo de vida e sua visão de mundo.
     Somente onde a lei da ação e da vontade estiver intimamente ligada a uma essência espiritual é que o Heroísmo adquire o valor de um ato mágico e transcendente. E esta integração áurea é característica do tipo de espiritualidade solar e olímpica, aquela que determina o guerreiro como tipo humano superior e o Imperium como forma de existência tradicional.
     O Heroísmo segue assim um inexorável sentido de restauração espiritual, que perpassa por uma restauração imperial e guerreira.
     A ação heroica, nos termos em que aqui a afirmamos, é a atitude natural do Kshatrya, daquele espírito capaz de enxergar e de viver o sagrado de forma ativa, reunindo a virilidade e o vigor juntamente com uma espiritualidade integrada e total, necessários para a empresa heroica e restauradora.
     A atual Era de degeneração, a Kali Yuga, em seus ciclos finais, os quais estamos a atravessar, só pode ser contida e recuar pela emergência do ideal heroico como nunca se viu antes: implacável, rígido, trágico, gélido, inquebrável e, ainda mais, luminoso e transcendente. E pelas mesmas propriedades deve ser forjado o tipo guerreiro desses tempos últimos.
     O Heroísmo é, portanto, ação transcendente de restauração, capaz de ecoar em dois mundos: no mundo superior dos Deuses e Heróis, que também assumiram um tal dever heroico, e no mundo contingente do meramente humano.
    
O turbilhão da Idade das Trevas
    
     A Era de Kali, a última etapa de decadência rumo ao fim, a agonia do Espírito.
     Esta é a época de materialização de toda ordem transcendente, da mudança de todo significado espiritual profundo para um reles e superficial saber baseado na existência material cotidiana. É o período de subversão de toda identidade e de todo ser em nome de um nivelamento em uma escala inferior de pura quantidade.
     É o reino da mescla, da imundice, do sujo, do feio; é a ascensão do pária ao mais alto nível social. Mas é também um universo de ilusões demoníacas que acobertam toda essa ruína: a miragem da perfeição, da limpeza e da claridade racionalista, o doce sonho progressista, o devaneio das vitórias do pacifismo humanitário, a quimera da honestidade e imparcialidade científica, a fantasia do asseio e da sanidade da busca espiritual moderna e o encantamento das superioridades que provém do inferior.
     Muito se pode dizer desta etapa de degeneração, inúmeros textos tradicionais afirmam claramente a vinda desta Era final como signo do decaimento de toda e qualquer expressão espiritual e suas verdades transcendentes. Contudo, nós que hoje vivemos em seu seio, sentimos o quanto seu avançar é rápido e seu apetite é voraz.
     A Era de Kali expressa-se como uma tendência, como uma força ou um vetor, uma energia espiritualmente visível para aquele que é capaz, direcionada contra qualquer elemento que manifeste um sentido transcendente e espiritual. É um raio negativo de puro telurismo e demetrismo, de pura energia ctônica e gregária, emanado desde os estratos mais inferiores do mundo do devir. Esta força, percorrendo de baixo para cima a esfera vital do homem, tende a mesclar as influências físicas, anímicas e espirituais, apagando a ordenação hierárquica entre corpo, alma e espírito, contaminando assim o elo de ligação deste último com o transcendente, confundindo-o, subvertendo-o e, por fim, destruindo-o. Para que esta tendência seja sustentada e atue na realidade de forma progressiva, forjando o sentido involutivo do homem, cada vez mais materializado e materializante, a idade das sombras elege seus agentes, aqueles que mais expressaram o “anti-espírito” da decadência em seus diferentes aspectos.
     A idade de Kali é um turbilhão de caos físico, anímico e espiritual. É uma espiral antimetafísica que carrega todo princípio transcendente, e suas diferentes formas de manifestação real, por um trajeto de mesclas, de inversões, mudanças e contaminações em direção a um fundo onde tudo adquire a marca do material, decaindo num patamar inferior de existência para um posterior esquecimento e desaparecimento. Vivemos hoje perto deste fundo, numa época de rápido avançar desta Era, e o sentimos quando percebemos que tudo aquilo capaz de conter em si a marca da Kali Yuga, tão logo haja emergido na esfera de reconhecimento cultural de uma comunidade ou de todo o mundo, rapidamente este elemento ganha força e se expande sem maiores dificuldades, por mais decadente que seja sua essência ou por mais inferior que tenha sido sua concepção. Parece que quanto mais perto se está do abismo mais rápido se anda.
     A idade sombria pode também ser descrita como um macroprocesso que engloba em si inúmeros processos, os quais, aparentemente diferentes, caminham todos para o ínfero, ou seja, mesmo trilhando sendas supostamente contrárias, mesmo estando em lados opostos da espiral, compartilham o mesmo resultado final. São sistemas políticos, pensamentos filosóficos, instituições religiosas, símbolos, raças, estruturas culturais diversas, enfim, tudo que possa sustentar um significado espiritual intrínseco e único, sendo então capturado pelo turbilhão, será progressivamente corrompido, subvertido e rebaixado a sua expressão unicamente material e humana, sua ligação com o mundo do Ser dissolvida, e sua forma servirá, por fim, de alimento para Kali, transformando-se em agente a serviço da decadência. Aqueles elementos cujo grau de expressão espiritual seja extremamente puro, de forma que sejam demasiados inflexíveis às subversões materialistas, como o são símbolos ancestrais, raças-espirituais sobreviventes ou leis tradicionais atemporais ainda vivas, serão vítimas de um processo específico para sua eliminação ou então, o que podemos observar com certa frequência, mantidos num tênue nível inofensivo, como verdades meramente contemplativas, atuando como uma espécie de válvula de espace.
     Confusão e desorientação são palavras de ordem na idade do ferro. Por isso, é extremamente difícil, principalmente para os mais desorientados e presos nos labirintos dos tempos modernos, avaliar todo e qualquer processo transcorrido na atual etapa através de fórmulas convenientes ou padrões ideológicos superficiais mesmo que eles expressem um certo perfil tradicional, pois, como falamos acima, vários destes pensamentos já estão inseridos no contexto decadente desta Era e atuam em pró dela: os indivíduos não mais existem como seres que expressam sua natureza própria, ou mesmo, estão nivelados ao ponto de expressarem uma natureza única e animal, as funções das suas respectivas castas encontram-se deterioradas, as raças encontram-se mescladas, traídas umas às outras, o que se chama transcendência é um ato confuso de fuga contaminado pelo lúdico e aquilo que se entende por hierarquia e superioridade está fadado a uma referência com a matéria em sua forma financeira, até mesmo do Heroico a Kali Yuga se alimenta, criando tipos medíocres e decadentes, dando-lhes a superação de falsas dificuldades. O fator quantitativo material tende inexoravelmente a contaminar tudo. Somente uma percepção extremista e uma atitude guerreira frente à realidade podem possibilitar a existência de um caminho possivelmente seguro o qual se orientar em meio às ruínas. Percepção extremista porque assume de forma irrevogável a superioridade do mundo da Tradição frente à atual era pela qual passamos, bem como a preeminência de todo significado espiritual e transcendente por sobre qualquer outro, significado este contido em qualquer doutrina de ordem tradicional que esteja em plena sincroniza com a raça-espiritual a qual se pertença; e atitude guerreira porque trata-se de guerrear contra o turbilhão de influências para que esta visão seja sustentada. Estas duas posturas são condições primordiais para qualquer visão de mundo que intente assumir o princípio da ação como Heroísmo.
     O efeito final e característico da idade sombria é o rompimento da ponte de ligação real entre o plano superior e o mundo dos homens. Elo que caracteriza precisamente o mundo da Tradição. Por isso, o mundo moderno, atual etapa a qual vivemos, construção decadente que exprime de forma cada vez mais perfeita a Era de Kali, é a pura antítese do mundo luminoso da Tradição. O desaparecimento desta ligação pode ser descrita mediante o que se conhece como dessacralização do mundo, processo pelo qual o Ocidente indo-europeu marcou seu ingresso em direção à idade das trevas. Da dourada Satya Yuga onde este vínculo de comunicação estava mais vivo do que em qualquer outro tempo, e fora regido por um “Sol Espiritual” presente na figura de um grande Deus (Kronos), passa-se, por efeito da influência lunar da casta sacerdotal, a uma era diferente, onde o sagrado começa a ser melindrosamente guardado num lugar específico do mundo, alterando a dinâmica orgânica na qual existia nos povos indo-europeus de raça-guerreira. A transcendência viva e contínua é assim atacada em sua essência solar, para posteriormente ser limitada e por fim esquecida. Desta primeira etapa de decaimento chegamos à Kali Yuga atual, cuja ordem específica de caos e degeneração parece ter rondado toda existência do homem, desde as origens luminosas, como um vírus inconsciente, uma força existente nas sombras, uma serpente rastejante que inocula seu veneno em pontos determinantes.
     A ligação viva entre os dois mundos é expressa no macrocosmo através de uma organização de tipo imperial, cuja estrutura régia, aristocrática, viril, politicamente orientada ao alto, é capaz de vencer a influência negativa das potências materializantes e inferiores. Este tipo de união, no Império, na forma de uma mística imperial, é uma manifestação direta dos Deuses e Heróis que fundaram no passado mitológico a estirpe, que abençoaram o solo, que inspiraram a Elite e que determinaram, além disso, o destino da raça-espiritual e do próprio império. Em nível microcósmico, esta ponte é erguida sobre o espírito kshatrya, pois através de seus estratos superiores é que o divino se faz vivo e ativo. É através de suas capacidades mágicas, construtoras de uma Vontade supra-humana, que o guerreiro régio ostenta a posse do princípio solar da ação sobre a contemplação lunar sacerdotal.
     A Kali Yuga então destrói de variadas maneiras a mística imperial e dissolve, conjuntamente, a vontade do Herói.
     A re-união entre os dois mundos só pode ser encarada como um chamado às armas, uma declaração de guerra, pois somente a destruição dos diferentes aspectos nos quais a onda materializante da Kali Yuga manifesta-se possibilita a re-unificação da ponte rompida. Este é o aspecto mais propriamente espiritual do ato heroico, aquilo que marca seu direcionamento ao alto.

A Regressão das Castas no Processo Involutivo

     Partindo-se do mundo místico da Idade de Ouro, onde o comando da existência estava a cargo da altivez e da vontade contida na casta dos guerreiros nobres e reis divinos, passamos à progressiva contaminação de seu princípio espiritual ativo através da influência emanada da casta lunar sacerdotal. Todo o ethos régio-guerreiro que exercia a autoridade absoluta e mantinha saudável a relação hierárquica entre os dois mundos é atacado e envenenado pelo espírito lunar e devocional da segunda casta, característico de civilizações orientais de perfil demétrico, pelásgico e dionisíaco.
     Não é difícil admitir o grande poder e energia contidos na casta dos sacerdotes Bramannes. Esta força provém do fato de que a casta dos líderes sacerdotais é a única a dividir com a casta dos guerreiros a posse daquilo a que se pode chamar uma espiritualidade, uma dimensão existencial que abarque os conteúdos do transcendente; no caso dos sacerdotes, propriamente, a espiritualidade lunar e devocional. As demais castas, podemos dizer, são desprovidas de uma espiritualidade que as represente: a natureza interior do mercador e do burguês, a terceira casta, determina uma mera expressão pálida de princípio espiritual, seria mais precisamente o que poderíamos chamar de um psicologismo, simples expressões da alma, desejos e sentimentos que podem ser justificados por uma linguagem devocional, mas que não ultrapassam o nível de um mero simbolismo materialista vazio, que tende, sempre, a uma relação com o quantitativo; a casta dos servos, por sua vez, possui apenas figurações culturais massificadas, folclores totêmicos e temas ctônicos; e o pária, por fim, aquele que não está a altura de qualquer casta, por uma ausência congênita de unidade e natureza própria, o homem símbolo de nossa Era, não possui nada a não ser instintos, violência e corrupção.
     Estando todas as castas ordenadas de maneira orgânica num ambiente onde o Espírito afirma e justifica ontologicamente toda natureza própria, as mesmas se mantém numa dinâmica orientada até o alto, onde as expressões do sagrado, emanadas da Elite régia, controlam e amenizam as influências caóticas e materializantes das castas inferiores. Toda aristocracia do espírito conhece bem este aspecto funcional do mundo da Tradição, donde os elementos operativos do rito, dos símbolos, das construções verticalizadas e a formação de uma estrutura cultural orientada hierarquicamente, servem para afirmar o mundo superior do ser, daquilo que é, nas naturezas individuais – que passam a refletir aquilo que realmente são – e nas suas respectivas castas – que passam a acomodar os homens de mesmo traço interior. Um tal ambiente tem de necessariamente possuir uma estrutura de tom imperial, pois é através dela que a hierarquia se molda da forma mais perfeita à emanação mística do transcendente. Por tal fato, somente num Imperium é que o sistema de castas justifica-se e é símbolo de ordem e liberdade. Fora dele significa apenas mais um tipo de aprisionamento. Assim, dentro de uma estrutura imperial o aspecto heroico de cada casta é mais facilmente expressável, exatamente como obediência à natureza própria e à ordem manifestada como lei sobrenatural.
     A passagem da Idade de Ouro para a segunda, a Idade de Prata, marca o primeiro declínio. E este tem a casta sacerdotal como causa eficiente. É a passagem da espiritualidade solar para a lunar devocional. Este declínio significa, primordialmente, a queda metafísica do Heroísmo, o que causa a inexorável descida de toda Tradição à Kali Yuga.
     Dada sua importância descrevamos então esta primeira queda.
     O mundo solar da Tradição Imperial Guerreira, dimensão real cravada por sobre as contingências da ordem humana pela via da ação, como força, e pelo Espiritual, como princípio, sustenta-se, num exercício eterno do mais puro Heroísmo, pela vontade do Herói. Este possui o mistério da conexão viva com o mundo superior dos Deuses e guerreiros divinos contido num estrato mais transcendente de seu ser, que é precisamente o âmbito da Magia.
     Desta realidade primordial passamos, como acima já comentamos, ao mundo lunar da Tradição devocional das civilizações matriarcais, influência oriental, construído sobre o espírito do sacerdote como símbolo. Diferente do guerreiro, o sacerdote não é portador de qualquer elemento mágico em sua natureza. Sua postura espiritual é desprovida da possibilidade de contato real com o transcendente, sendo-lhe assim possível o conhecimento, jamais a vivência. Por isto, é então a contaminação pela espiritualidade oriental, lunar e sacerdotal o que marca o primeiro desnível do mundo imperial da tradição solar, justo por representar fundamentalmente uma mudança de posição ontológica da base metafísica que gerava uma ética, uma visão de mundo e uma realidade.
     O espírito sacerdotal encontra-se numa dimensão existencial eminentemente diferente da que repousa o guerreiro. A morada sacerdotal tem seus alicerces fincados no puro universal e naquilo que o liga a sua lei, a palavra, e em sua direção o sacerdote move todas as suas forças viventes; o Kshatrya, por sua vez, reside no ponto de pura tensão entre os dois mundos, entre o ser e o devir, entre o universal e o particular manifestado, e é justamente a presença neste ponto de ancoragem metafísica que dá ao guerreiro a possibilidade de tornar-se divino, quando ele supera as influências de um desses mundos e expressa as propriedades do outro, ou seja, quando ele ergue, desde o inferior, e fixa um dos mundos sobre o outro superior, extraindo a sabedoria ancestral que carrega dentro de si e fazendo-a viva exatamente por meio do exercício do Heroísmo. Desta ação deriva os traços similares do guerreiro e do artista. É uma arriscada guerra dividida em duas posições, uma a qual se deve superar para que à outra se possa chegar mediante ataque e defesa conjuntos. Por isso, sendo a Idade de Ouro a Era a qual corresponde toda expressão do ser frente ao devir, é também a Era de supremacia e vitória constante do espírito régio-guerreiro.
      Estando seus olhares voltados para a impessoalidade distante do mundo do universal, o sacerdote perde de vista aspectos e processos passíveis de transcorrer em sua realidade exterior que podem exprimir diretamente os conteúdos do sagrado de forma ontologicamente estrutural; então, decorrente dessa restrição metafísica, tais conteúdos são acondicionados num meio reservado, e o contingente, assim, fica cada vez mais descoberto de significados e referências espirituais. O acesso aristocrático ao divino, caminho forjado e trilhado por aquele que é capaz de perceber e captar aquelas manifestações do sagrado ao seu redor, ou seja, por aquele capaz de exercer a transcendência ativa, tal caminho é rebaixado a uma via única e universal, fabricada por um sistema religioso e doutrinas morais, resultantes desta configuração dessacralizada. Por isso, o espírito lunar exprime-se marcadamente na criação de sistemas religiosos monoteístas, onde esta tendência ao universal – entendida também como a atitude de relegar a segundo plano as diversidades inerentes a cada tradição – afirma o fato que é deste tipo de espiritualidade oriental e de seus subprodutos culturais que germina o ideal de universalidade e igualdade em diferentes esferas. O sagrado perde assim potência ontológica vivente, restando-lhe, inicialmente, apenas referência axiológica, para posteriormente até mesmo esta última ser dissolvida e alargar-se cada vez mais a distância entre os dois mundos. Dois dos princípios mais primordiais e sagrados do espírito tradicional são então contaminados por todo esse processo: a Política e a Guerra.
     O princípio político da Tradição guerreira é minado através da subversão de sua essência espiritual e da secularização da ideia de Estado. Este último, sendo separado do elemento metafísico que o sustentava e que justificava sua soberania e hierarquia, tende a distanciar-se de sua organicidade, tornando-se um corpo apático sem alicerces transcendentes, uma vez que a preeminência sacerdotal, por falta de autossuficiência, deverá ser agora protegida por uma casta guerreira já em si dessacralizada, potência puramente física, espaço aberto ao despotismo, pois também o líder, ou rei, terá função unicamente operativa, uma vez que separado de sua energia carismática. Não mais como um organismo vivo, estruturado pelas leis ditadas desde o supramundo, o Estado agora é encarado de forma feminina e servil, estreitando-se a outras conformações que não mais a de uma soberania e autoridade vindas do alto. Onde antes encontrávamos o sentido da Honra e do Orgulho, derivados de uma ética aristocrática, bem como uma obediência calma por parte das castas inferiores, como relação entre Povo e Estado – posturas determinadas pelas particularidades de cada Tradição – agora teremos os mais diversos contornos, desde a idolatria, passando pela servidão e desapego, até diferentes formas de ligação superficial e antiviril, de onde a ideia de Estado decai para a de um mero sistema administrativo a serviço da casta dos mercadores e dos servos, quando então lhe será inoculado o veneno democrático.
     A arte régia da Política corrompe-se ao lhe ser retirado os princípios éticos aristocráticos que determinavam sua prática, assim como seu direcionamento transcendente. Restando-lhe o jogo materialista maquiavélico de homens já desenraizados e distantes de qualquer interesse espiritual.
     O outro princípio das tradições régio-guerreiras atacado pela contaminação com a espiritualidade lunar é o preceito da Guerra como meio de elevação espiritual. É da guerra que o guerreiro extrai sua conduta e afirma sua ética. Os valores que se expressam na batalha são os que mais exigem do espírito humano, sua superioridade é incontestável frente à devoção, à riqueza, à erudição ou à contemplação. E somente na guerra o valor máximo do guerreiro faz-se mais forte, qual seja, a Honra, o núcleo espiritual de sua ética, o elemento que o transmuta em Herói. No ápice do furor heroico, na mors triumphalis, onde seu espírito ascende aos céus, um Deus caminha entre os homens, mas não uma entidade universal, de uma impessoalidade distante ou de uma pessoalidade perfeita, assim como a entende a concepção lunar, e sim, com efeito, um ser que mesmo de posse de todas as vicissitudes própria aos mortais superou titanicamente a dor de seu corpo, os medos da sua alma, ignorou seu destino de morte abraçando-o, aniquilou qualquer determinação material imanentizando-se com uma “couraça” mágica transcendente e que honrou, por fim, todo significado possível de toda sua Tradição milenar, assim como o fizeram muitos de seus antepassados e divindades olímpicas. Este momento, para o guerreiro, tem cheiro de sangue, não de rosas nem de livros mofados, pois são os olhos do inimigo o que se vê nesse instante.
     São nos períodos de conflito que a elite régia mostra sua inata superioridade e onde a mediocridade de outros se expõe, isto fica explícito na tradição helênica quando Tulcídides descreve o discurso do comandante espartano Brasidas a seus hoplitas, durante a Guerra do Peloponeso: “Cumpre-vos ser bravos na guerra não pela presença de aliados em cada combate, mas por vosso próprio valor; nem deveis recear o número dos adversários, vós que não viestes de países como os deles, nem de uma terra em que muitos dominam poucos, e sim de um terra onde, ao contrário, a minoria domina a maioria, com força adquirida não por um meio qualquer, mas pela superioridade no combate”. O princípio aristocrático firma-se, pois, num ambiente em que o bélico tem um valor transcendente.
     Na tradição islâmica podemos encontrar uma interpretação desse preceito muito bem transposta nos textos sagrados, onde o conceito de Pequena e Grande Guerra Santa refletem, apesar que de forma limitada e com uma dignidade heroica menor, esse significado transcendente. Limitada porque, no Islã, tais termos denotam ainda uma influência lunar, pois têm como pano de fundo, no caso da Grande Guerra, um ideal de uma salvação pessoal num outro mundo, permeada por uma ânsia pela recompensa a ser ganha, e, no caso da Pequena Guerra, o desejo de conversão e persuasão de outros povos ao fator religioso, instalado, por sua vez, sobre um substrato dualista e universalista. O guerreiro não é ai um “irmão de armas” da divindade, é ainda uma criatura cujo sentido de obediência confunde-se com um servilismo religioso.
     Nas tradições guerreiras indo-europeias o sentido antimaterial e espiritual da guerra é levado ao extremo, onde o herói morto em combate divide o mesmo local sagrado com os demais Deuses, chegando ao ponto de, na tradição nórdica viking, mesmo após a morte o guerreiro continua sua preparação para uma guerra ainda mais superior, ainda mais transcendente, que emergirá quando o lobo ascender no Ragnarok. Na tradição dórica e romana, onde o ideal imperial se fez mais perfeito, a guerra foi encarnada na figura transcendente de um deus: Ares, entre os espartanos, Marte, entre os romanos, deus das Legiões. Frente a tais divindades não havia culto nem postura devocional, apenas pedido de auxílio no momento difícil.
     Na guerra o Heroísmo é a verdadeira substância da Vitória, não a técnica, a estratégia ou as armas de guerra, estas, obviamente de importância incontestável, são, na verdade, manifestações ônticas da substância heroica, que brotam do exercício da Arte Guerreira.
     A concepção lunar, orientalista e feminina do combate é gritantemente diferente destes significados que acima comentamos. Primeiro que, arrastada pelo processo geral de progressiva dessacralização, a guerra também passa a ter sua marca espiritual distanciada de seu ato, e segundo, some-se a isso a postura contemplativa do sacerdote, para o qual está excluída de sua natureza o pegar em armas, assim como o ideal de amor universal que lhe é próprio, teremos então que não mais homens livres enfrentarão o inimigo com desejo de glória e vitória, impulsionados pelo senso do dever, mas sim seres improvisados na função do combate, cujo influxo de sentimentos de raiva, medo, ódio, desejo de salvação, e toda sorte de manifestações antiviris, está longe da frieza superior e postura pétrea necessárias para a elevação espiritual durante a batalha.
     Estes são, portanto, os dois pilares sobre os quais se ampara e se reflete a espiritualidade olímpica da tradição imperial guerreira. Afastados de suas valências ancestrais mediante a mescla com os espíritos lunares do oriente, resultando na ascensão do brâmane por sobre o kshatrya, atesta-se a primeira queda de nível desde o mundo solar, da Idade de Ouro até a de Prata, chegando aos dias atuais na Idade Sombria. Esta primeira queda representa a separação da ponte hierárquica que unia os dois mundos; separados, rompida sua hierarquia, subvertida suas relações, o resultado é progressivamente o distanciamento entre os dois.
     Tendo, assim, sido negado ao sagrado a possibilidade de se fazer vivo, os limites do meramente humano são fixos, e uma vez transmitidos à esfera espiritual, transmutam toda forma de experiência transcendente em simples psicologismos, moralidade ou doutrinação; isto é o que caracteriza o segundo desnível: a queda em meio ao materialismo. Apesar de ser essencialmente inferior e insuficiente, a espiritualidade lunar e oriental, como antes falamos, é ainda uma espiritualidade, é ainda uma experiência do sobrenatural, contudo, nessa segunda queda, da qual agora comentaremos, tal caminho será progressivamente apagado. Este é o momento em que a casta dos mercadores e da burguesia toma preeminência. É o reino do valor material, o terceiro estado.
     Neste mundo a decadência se aprofunda marcadamente como materialização, secularização e laicização de significados, conceitos e símbolos presentes na ordenação espiritual lunar, mas que agora não mais têm por propriedade um contato com o transcendente, e sim, precisamente, a função de alicerçar um ideal de bem viver, de paz, harmonia, de desfrutar benefícios, de atingir determinado grau de felicidade passiva e contemplativa, o que forja uma ligação, uma dependência, quase inseparável do ser com o ter, e gera um tipo humano calculista, individualista, desenraizado e utilitarista. A mentalidade burguesa materializa-se assim sobre uma base universal, igualitarista e humanista construída pelas categorias lunares orientais. Esta mentalidade transpõe tais categorias do âmbito religioso para o meio intelectual, secular e cultural, envolvendo-as por uma crosta filosófico-doutrinal, acadêmica e científica, que as mimetiza exteriormente. Nisto emerge a figura do intelectual, sacerdote decaído, como agente mobilizador deste processo, unindo em si uma visão de mundo limitada por estruturas doutrinais labirínticas e o ideal de uma racionalidade humana universal. Deste tipo expandir-se-á uma cadeia geral de ideologias e pensamentos formalizados e sistemáticos que servirão como uma espécie de hipóstase psíquica coletiva de uma verdadeira espiritualidade (muito embora inúmeras verdades tradicionais também poderem ser acessadas por esta rede). Dita atuação sacerdotal-intelectual terá sua coroação qualitativa no ideal do movimento Iluminista, de onde serão formadas todas as matrizes ideológicas do mundo moderno e da Kali Yuga, quais sejam, destacadamente, a democracia moderna, o racionalismo cientificista e o mito do progresso. Neste momento o conceito de “humanidade” sai de seu mundo metafísico lunar e sentimental e transforma-se numa verdadeira força ontológica universal de nivelamento entre os povos, mediante a destruição de suas particularidades intrínsecas e a mescla em todos os níveis de suas características próprias.
     Em meio a toda esta manifestação decadente, neste ambiente anti-espiritual propício, emergirá como um deus titânico a tendência mais inferior contida na terceira casta: o amor universal pelo capital, a usura. Dela transmitir-se-á ao estilo burguês materialista um poder dominador ativo, uma espécie de contra-heroísmo ou heroísmo negativo, que impulsionará o desejo irrefreável de acúmulo ilimitado de capital, extraído-se, para isso, toda seiva da vontade e da criatividade humana, assim como toda sua dignidade superior, configurando-se então na força evolutiva e propulsora da Kali Yuga. O vórtice de expansão deste terceiro estado potencializado são então os Estados Unidos, formado por sobre estirpes antigamente guerreiras, e que ele mesmo decai, ou seja, evolui, em direção às próximas etapas de decadência: o mundo coletivo do quarto estado, onde impera o ideal do trabalho como dever sacralizado, e o mundo do pária por fim.
     A Kali Yuga chega assim a seus períodos mais intensos e críticos.
     Ao congregar todas as influências negativas que recaíram sobre as origens régias e aristocráticas, a idade das trevas tem perto de seu périplo final a atuação em uníssono de todas elas: o espírito lunar, com suas categorias humanitárias e universais atuando como princípio metafísico a ser secularizado e materializado num mundo faminto de paz passiva e amor universal; a terceira casta atuando como agente materializante, força criadora de toda estrutura material necessária para a expansão do homem coletivo, passando por cima de todas as tradições sob a forma de um grande mercado mundial; o Shudra, parido nas metrópoles metacapitalistas da casta anterior, levando consigo toda sua bagagem cultural inferiormente nivelada e sua promiscuidade característica; e por fim, como resultado de todo este processo, o ideal do pária, do ser débil, lúdico, fraco, brutalizado, fisicamente disforme, e todas as demais qualificações possíveis de se ver nos ambientes onde o grau de decadência é mais avançado. Assim, parece ser o mundo do extremo capitalismo especulativo e americano aquele que mais se caracteriza como foco de disseminação da Idade das Trevas, ou seja, a região de maior avanço da Kali Yuga, pois é o ideal americanista aquele que reúne em si todos os moldes funcionais do arquétipo final de decadência universal ou fim de um ciclo. É o mundo onde nada tem valor fora de seu valor de mercado, onde todo símbolo é distorcido numa versão moderna forjada para compra e venda, onde o homem existe como um ser frágil, cego pelas luzes das famigeradas metrópoles, acorrentado a falsas necessidades, enfraquecido por horas a fio frente aos meios de mídia, adepto de hábitos dos mais inferiores, tendo como modelo social ao artista, ao desportista, eternamente dependente da opinião da casta sacerdotal acadêmica que prega o culto cientificista, adormecido pelo sonho do paraíso terreno de puro conforto, escravo de tendências sexuais exacerbadas, uma existência enfim afeminada e antiviril, configurando o modelo exato da raça do homem fugaz, um tipo de pária produzido em escala industrial por toda megaestrutura cultural americana.
     Além deste gigantesco meio cultural cuja influência atinge todos os rincões da Kali Yuga, é este país o detentor de todo aparato institucional, político-financeiro e militar necessário para a destruição final de todo e qualquer sentido identitário próprio das Tradições agonizantes, ou seja, os Estados Unidos são o próprio motor da Kali yuga. Tal estado de degradação tão concentrado numa só região talvez só possa ser encontrado de forma equiparável na antiga cidade de Cartago, onde imperou o mesmo sentido cosmopolita e antitradicional permeado pelo amor lunar e universal ao ouro e onde as mesmas estirpes orientais dominavam o cenário decadente de forma implacável.
     Assim, entendendo a Kali Yuga como a era última de ação uníssona de todo elemento antitradicional, teremos a terceira casta atuando como força motriz para produção do ideal da casta dos servos, e, por fim, do pária, aquele que encontramos no estágio atual o qual atravessamos. Estando um determinado povo ou região relativamente livre da influência motora do capital e da cultura americanista, bem como estando protegida do fator coletivista, e tendo-se ainda um elemento heroico identitário o qual possa ser atualizado e afirmado sobre a memória espiritual comunitária, é possível que se livre ou se lentifique o avançar da Idade Sombria sobre tal povo, e nisto o Heroísmo dá seus primeiros passos.

O Heroísmo e a ascensão de um novo Ciclo

     O Heroísmo como acima o mencionamos – ação transcendente restauradora – é o ato de interromper o avançar deste macroprocesso e fazê-lo recuar, atingindo-se um estado de normalidade que reflete, em qualquer grau, o mundo das origens da Tradição.
     O ideal heroico é amparado pelo sentido cíclico da existência, que lhe confere tanto a certeza da possibilidade de uma restauração cíclica sobre determinado período decadente – através da ação de homens superiores e livres, munidos de uma Vontade pétrea – como o afastamento de qualquer sentido fatalista e passivo contidos na visão linear característica da religiosidade oriental.
     A visão cíclica autoriza então que o Heroísmo submeta a espiral da Idade das Trevas a um contraprocesso de regressão, afirmando um centro a partir do qual um Ciclo dissemina-se: uma ilha temporal onde o mundo das origens pode-se fazer novamente vivo e luminoso.
     Um Ciclo Heroico é, então, essencialmente uma era de restauração, que se inicia por um período de redescobertas intelectuais, de criatividade, de nostalgia pela sabedoria ancestral desaparecida; quando poucos homens, desde o abismo, passam a conseguir enxergar as alturas. É, em si, um período de busca e de despertar espiritual, onde o Espírito começa a reassumir formas vivas, potências ontológicas que se expandem mediante a ação de uma elite heroica que assume a restauração do vínculo de ligação entre os dois mundos e a aniquilação de todo agente de decadência como princípio vital de sua existência. Assim, nesses primeiros tempos de restauração heroica, o caminho ao sagrado e à Tradição começa a ser reconstruído, e aqueles espíritos kshatryas que estavam entorpecidos ou exercendo alguma função diferente de sua natureza, ou mesmo escravizados por qualquer motivo, começam a assumir sua natureza guerreira. Surge disso, um ambiente espiritual, intelectual e psicológico propício para que uma visão de mundo pulse unitariamente por toda uma linhagem, comunidade ou povo, que neste ponto já passa a vislumbrar aspectos de sua raça-espiritual. A Tradição ganha então contornos reais, e até mesmo a esfera material, neste momento, também se torna propícia para refletir conteúdos espirituais. Delimitado assim os limites espaço-temporais por onde a restauração tem início e se expande, um Imperium então começa a germinar, através de formas diversas e estruturas variadas que se unirão quando um certo Líder assumir toda propriedade divina contida em seu interior.
     Um Ciclo Heroico é também um período mitológico. Uma vez que potencias sagradas fazem-se vivas desde a atuação real de uma aristocracia já estabelecida, os significados de todos os entes e de todos os processos passam a ser encarados em sua essência mais profunda, e, quanto mais se se aprofunda metafisicamente, neste sentido, um objeto, um símbolo ou um significado, sem perder de vista sua propriedades tradicionais manifestadas, mais profunda passa a ser a visão de mundo e mais íntima e cheia de significação passa a ser toda a realidade e a vida, atingindo-se, por fim, o próprio mundo do mito, mundo ressacralizado aristocraticamente. Neste macrocosmo ressurgido, o suprassensível estabelece-se sobre pontos de referência que, independente da linguagem e do simbolismo que assumam e dos ritos marciais que o representem, atuam como forças divinas mobilizadoras, potências espirituais vivas, sejam elas luminosas ou titânicas e diabólicas. Daqueles homens que mais compreendem e mais sustentam uma postura de virilidade e de domínio frente a este oceano de energias espirituais, é que se forma a nobreza, e uma verdadeira Elite toma seus contornos. A Elite Heroica firma-se como o elemento de consagração de toda propriedade transcendente e a protetora de toda sabedoria ancestral frente a qualquer deturpação ou subversão, encarnando da forma mais purificada possível todo ideal de volta às origens e resgate da Tradição, assumindo o posto de superioridade que lhe é de direito. É precisamente esta elite guerreira que rompe todas as barreiras que impediam ao sagrado se manifestar no espírito dos homens. Do mundo da contingência material, do contexto cultural racionalmente e cientificamente nivelado, ou contaminado por desejos cosmopolitas e igualitários, e de preocupações e temas inferiores, a elite guerreira força a entrada do espírito em todas as esferas possíveis.
     Não há possibilidade de uma verdadeira restauração sem a queda inexorável numa luta física, que é a consequência natural de todo princípio de ação, de todo Heroísmo, direcionado contra qualquer Era de decadência. A Honra é, neste sentido, um dos substratos sobre os quais o ímpeto bélico germina, pois a postura honrada frente à espiritualidade própria e aos valores herdados da Tradição alicerça toda uma diretriz de proteção, defesa e guarida das raízes ancestrais, bem como a adoção de uma rígida e imediata reação a todo agente de relativização e deteriorização, dando-lhes a correção necessária.
     Com a Vitória progressiva do ideal guerreiro, aristocrático e com a confirmação do Heroísmo como meio vital de existência, a decadência espiritual da Kali Yuga é revertida e o Ciclo Heroico resultante resignará os efeitos deletérios de cada casta. O primeiro fator a ser revertido pode ser então o eixo existente entre a produção da humanidade coletiva e do rebanho humano fruto da atuação materializante da força burguesa. Toda visão de mundo mecanicista e utilitarista, a qual determina a escravização ao trabalho do homem massa, e que expande por todas as partes o mundo dos servos, é então atacada em suas bases metafísicas, quais sejam, o amor lunar pelo ouro – a usura – e o ideal universal de uma humanidade unida nos estratos inferiores de sua existência material. Com isso, a elite financeira e materialista é aniquilada por uma aristocracia do espírito e o motor da Kali yuga é desmantelado. Os valores intrínsecos ao homem guerreiro tomam preeminência em substituição a esse eixo dissolutório e atingem cada grupo social que os expressarão mediante seus limites naturais. A percepção sacral da realidade chega então também às castas mais inferiores, como uma luz libertadora, determinando a volta às suas naturezas próprias frente à ordem hierárquica emanada desde o alto.
     Na descrição “hesiódica” a raça-heroica emerge por mandado de Zeus – princípio solar divino – exercendo seu poder sobre a raça-brônzea de “grande força e braços invencíveis” e “brônzeas armas e brônzeas casas”. É a raça-heroica descrita como divina, composta por semideuses que combatem a todos e que permanecem por eleição do Cronida na Ilha dos Bem-aventurados.
     É precisamente nos termos de uma casta guerreira reestruturada sob um princípio divino ativo, ou seja, uma raça-heroica manifestada em toda sua potência olímpica, juntamente com um elemento do qual falaremos mais adiante, que um Ciclo de Restauração concretiza-se em sua totalidade, abarcando um Imperium e asseverando o Herói como tipo humano vitorioso, vencedor das trevas interiores.

A Vontade e a Honra como Forças de Restauração

     Iniciaremos pela estrutura tripartida do homem, que, no guerreiro, é essencialmente diferente das demais, marcada por uma potencialidade imanente direcionada ao divino. A distinção tripartite e hierárquica do homem – sobre a qual tentaremos dar um tratamento preciso o quanto necessário for para que as peculiaridades do Herói sejam esclarecidas, não se tendo, contudo, nenhum objetivo sistematizante – é uma visão compartilhada pelas principais tradições indo-europeias, como a trindade romana corpus, anima e mens, ou a helênica soma, psyché e nous, assim como também na Tradição Hermética sob a ideia do Trimundo microcósmico.
     O corpo, a estrutura material, a esfera dos sentidos e das necessidades fisiológicas, é seguido pela alma, entendida precisamente como uma esfera psicológica, estrutura fundamentada no aporte funcional de energia vital para os mecanismos lógico-racionais e afetivo-emocionais de funcionamento basal da mente humana, intermediária entre o corpo e o espírito que armazena conteúdos inconscientes dos mais variados aspectos, polo feminino do ser, sede da personalidade exterior, superficial e condicionada, hipóstase exterior do Eu; sendo assim de âmbito energético é a alma um ser também material (matéria sutil); e completando a tríade antropológica temos o Espírito, a esfera mais superior, aquela que justamente guarda as funções mais superiores de criação, imaginação e intuição intelectual, domínio daquilo que se entende pelo Eu verdadeiro, personalidade profunda, sede do “principium individuationis” e estrutura que capta as emanações simbólicas e vivas do transcendente, polo masculino do ser.
     As peculiaridades próprias e as influências conjuntas de cada estrato num determinado homem são responsáveis pela resultante final que determina sua natureza interior.
     Como acima afirmamos, os homens que manifestam as características presentes nas castas inferiores não possuem aquilo que podemos chamar de uma verdadeira espiritualidade que os caracterize, o que em termos individuais reflete o fato de que tais homens pertencentes a estas castas são portadores de uma tênue esfera espiritual, possivelmente dissolvida pelo materialismo que lhes é próprio, resultando num desenvolvimento maior das influências da alma. O maior grau de espiritualização que podemos ver neles é uma série de tendências psicológicas direcionadas a subprodutos secundários e femininos do transcendente, em geral, elementos culturais simbólicos religiosos ou folclóricos, sendo, de fato, certas disposições mais sadias que outras, mas que não chegam a formar uma estrutura espiritual consistente e duradoura, uma Tradição. Estas inclinações estão em ligação constante com padrões morais sobreviventes da religiosidade lunar que, sob a forma de automatismos, lhes dotam o substrato inerte e passivo de onde se ergue toda uma realidade na qual os pontos de referência do sagrado, presos na inércia lunar, são envoltos por uma densa neblina materialista que esgota todo o conteúdo transcendente do suprassensível, materializa seu sentido e nivela sua verdade vertical ao mero contexto coletivo horizontal.
     Nos estratos abissais da alta finança especuladora capitalista, assim como nos órgãos políticos administrativos internacionais que manejam os rumos materiais e humanos da atual fase, ou seja, nas engrenagens do motor da Kali yuga, e também em ambientes típicos de grandes metrópoles onde em geral aspectos civilizatórias demétricos, ginecocráticos e dionisíacos se fazem marcantes, encontramos seres totalmente desprovidos de qualquer “átomo” de origem espiritual que seja. São homens-máquina, androides cuja função única é o sucesso de sua programação psicológica, ou criaturas de manifestada selvageria e animalidade, são, em suma, seres que decaíram ao nível mais baixo de existência: o pária moderno.
     No homem pertencente às tradições lunares, contemplativas, reunidas sob a imagem do sacerdote ou do crente e fiel, a esfera espiritual marca o limite superior de seu ser de forma rígida. Nos puros líderes sacerdotais, aqueles que mais se aproximam do ideal do santo, o recinto correspondente ao Espírito exerce um domínio total e rigoroso sobre todo o ser individual, controle que se assemelha ao de um déspota que ignora e abandona seu povo, ou mesmo sente prazer em maltratá-lo, pois não há, neste tipo, um ordenamento organicamente hierárquico, onde uma liderança espiritual leva junto consigo todo o ser em direção à transcendência – um microcosmos. O que encontramos é precisamente um isolamento do mesmo, causa de uma dessacralização interior na forma de uma culpa original a carregar ou de uma impureza espiritual intransponível, que se ligam à visão do indivíduo entendido como mera criatura, como ser incompleto, exaurido de toda potencialidade heroica. Nisto o Espírito se transforma numa estrutura rígida, anquilosada, intolerante, sem capacidade de voo a mundos superiores, por isso mesmo lhe restando apenas a contemplação como experiência do sagrado. É um espírito “pesado”, por ter de carregar a massa das outras esferas, ao negar-lhes os frutos de uma ordenação hierárquica, que se escraviza então a um dualismo centrífugo, num mundo fechado de puros universais religiosos ou intelectuais, cuja manipulação lhe é irresistível. Na condição de criatura e em sua existência devocional, o espírito sacerdotal é acoplado a realidades contingentes do meramente humano, como dor, sofrimento e pobreza, e como por uma espécie de retroalimentação o sacerdote delas nutrir-se-á e nelas ancorará uma relação de íntima ligação, podendo ou não daí extrair sua preeminência.
     À medida que o reino da quantidade vai se instalando, ou mesmo naquelas naturezas mais débeis, o espírito lunar não suporta o peso material das influências telúricas do corpo e femininas da alma, e prende-se a esta última, ou seja, decai sobre a matéria, e então quase tudo referente à espiritualidade e à transcendência passa a ser condicionado, de forma intensa e contínua, por fatores psicológicos emocionais, racionais ou inconscientes. As tendências psíquicas resultantes desse decaimento, das quais mais acima comentamos, servirão de matéria-prima anímica para confecção dos sistemas doutrinais ideológicos que fixarão em todos os povos as categorias universalistas, igualitaristas e niveladoras contidas na espiritualidade lunar oriental (tema sobre o qual também já pincelamos algo mais acima). Neste ponto até mesmo os caminhos religiosos contemplativos começam a endurecer-se e perder força transcendente, instalando-se na falsa espiritualidade das castas inferiores. Com o progredir da Kali Yuga estas formas religiosas agonizantes serão retalhadas numa gama incalculável de pseudo-espiritualidades, seitas, grupos supostamente esotéricos, cultos dos mais decadentes possíveis, líderes espirituais e messias sacerdotais dos mais variados teores, que serão aleatoriamente buscados decorrente da loucura espiritual que sempre resulta da mescla entre as espiritualidades do Ocidente Heroico e do Oriente, cujo fim último é a devoção à matéria.
     É importante que se afirme que qualquer forma de busca real por um espírito recuperado e de retorno a uma espiritualidade vivente não se sustenta ao ser trilhada por um caminho contemplativo interior, se este não estiver por sua vez em estrita ligação com uma ação heroica real, exterior e arriscada, e, ainda mais importante, é o fato de que qualquer busca e qualquer ação nestes termos não deve ferir uma lei básica da tradição que é o princípio da Ancestralidade. Esta é a lei de orientação do guerreiro, o farol que o guia em meio às trevas da idade sombria, e na atual etapa desta Era decadente sua luz deve refletir o mais longuinquamente possível no espírito daquele que intente uma restauração, iluminando a memória desde os últimos ciclos heroicos até os mais antigos hiperbóreos. A ancestralidade não é entendida como formato rígido a ser seguido por seu valor meramente estético ou biológico, ou fórmulas históricas prontas a serem copiadas, tal tipo de subversão é típica de intelectuais-sacerdotes entorpecidos de saudosismo fatalista; a Ancestralidade é uma herança intuitiva que gera uma força criativa, mas que só se concretiza mediante o exercício da Honra. E esta Honra é precisamente um dos aspectos da Magia.
     Deste modo, chegamos à descrição da natureza interior do Kshatrya.
     Onde procurarmos por algo que seja reflexo do divino, que tenha a marca da estabilidade, do durável e do eterno, de uma beleza atemporal, que seja fruto de uma criação inspirada em algo superior, que nos remeta a um estado nostálgico por tempos e eras perdidas e que demonstre um valor de centralidade frente às contingências da ordem humana, onde buscarmos por um tal elemento encontraremos nele a marca do Espírito. Contudo, se procurarmos pela essência pulsante, a energia viva inspiradora e atuante ou a força de concretização de uma marca espiritual, bem como seu caminho transcendente trilhado com uma ação extraordinária, e se procurarmos ainda por um feito fantástico e corajoso ao qual se possa classificá-lo de louco ou mesmo irracional lidado a uma história maior, ou se, enfim, buscarmos pela substância volitiva de manifestação do Espírito, acabaremos por encontrar a Magia como explicação. Esta é exatamente aquilo que faz do guerreiro um Herói. É a esfera que torna real toda potencialidade olímpica contida na casta da aristocracia régia e guerreira.
     O Kshatrya, além da tripartição acima comentada, é detentor de um estrato ainda mais superior do que domínio espiritual, um âmbito interior misterioso que o sacraliza mediante o contato vivo e hierárquico com o mundo superior do ser: a esfera da magia.
     Esta camada mágica no Herói é uma instância livre de qualquer influência telúrica, anímica ou lunar que seja, exatamente porque é uma esfera totalmente antimaterial, pura antimatéria – se assim podemos utilizar esta expressão – e só mantém relação direta com o Espírito. Sendo antimaterial é necessariamente hostil às expressões materializadas do mundo do devir, por isso é uma instância essencialmente bélica, e, sendo ao mesmo tempo anticontingente, é o ambiente onde repousa a máxima individualidade do ser, onde o “principium individuationis” atinge o patamar superior de um Eu mais profundo, aquele que tem morada garantida na Ilha dos bem-aventurados, no Walhalla.
     Este campo mágico tem dois aspectos que funcionam conjuntamente e expressam a marca peculiar do Herói. Um deles é a Honra, que, como acima comentamos, é o fator de onde deriva toda estrutura ética do guerreiro que será ostentada por seu Espírito. Fidelidade, Dever, Virilidade, Juramento, Lealdade, Sacrifício, Camaradagem, enfim, o ethos guerreiro e aristocrático, tem seu alicerce fincado na Honra, pois esta é uma postura assumida por um contato direto com os Deuses que por ela magnificamente também se expressam. A Espiritualidade solar determina assim uma postura erguida e em guarda, com armas à mostra, quando se está de frente a qualquer elemento que represente de forma real a emanação do mundo superior. Frente a qualquer outra expressão espiritual a Honra se reflete em respeito para com a mesma, o que restringe o desejo anímico de modelo único, universal e intolerante próprios do espírito que se fecha em si mesmo e se nutre de categorias lunares universais. A Honra é o primeiro agente interior capaz de refrear a materialização e a racionalização anímica do Espírito, ou seja, é o elemento interior que protege o guerreiro contra a contaminação de uma espiritualidade exógena. Com isso, é possível traçar um contraste irremediável entre a doutrina solar da Honra, como relação a qual se deve ter frente a qualquer verdade superior, e o ideal universal lunar e sacerdotal do amor e da devoção. A primeira postura é marcadamente viril, pois ativa e aristocrática, a segunda, por em si mesma não exigir nenhuma qualidade de ordem superior nem nenhuma superação interior, é passiva e feminina.
     Como acima comentamos, a Honra origina uma crosta protetora sobre os vínculos tradicionais, impelindo a uma ação anuladora contra os efeitos corrosivos de qualquer agente de relativização e de subversão de uma Tradição que esteja a atuar, contudo, mesmo antes de qualquer ato reparador, da Honra gera-se ainda uma espécie de um “alarme” intuitivo, capaz de identificar, à mínima movimentação, todo elemento com potencial dissolutório, seu modus operandi e sua estratégia subversiva, e daí despejar uma reação anuladora imediata. A Honra assim entendida é como um tipo de “escada” que leva o Kshatrya ao ponto superior de uma “torre”, como a de um castelo medieval, de onde ele adquire uma visão superior sobre os agentes larvais da decadência e de onde ele pode resistir e atacar (Simbolismo da Torre: símbolo de erguimento, visão superior, resistência, verticalidade). Com isso, emanando um valor de máximo respeito e máxima responsabilidade por uma Tradição, da Honra nascem o Orgulho e o Dever.
    O outro aspecto conformado em elo inseparável da Honra, na esfera mágica do Herói, é a Vontade. De tudo que acima foi afirmado sobre a espiritualidade solar, sobre a via ativa do Kshatrya, a conexão viva entre o mundo do ser e a superação do meramente humano, e, por fim, sobre o Heroísmo e a ascensão de um Ciclo Heroico, de tudo que acima expusemos é a Vontade Mágica a que está por trás de todos estes conceitos e os faz vivos no espírito do guerreiro e numa Tradição.
     Vontade, Magia e Heroísmo são praticamente o mesmo princípio gerativo, um causa o outro, um justifica e atualiza o outro. Todos reverberam em sincronia e agem em uníssono desde o microcosmo do homem heroico até o macrocosmo de uma tradição imperial guerreira.
     É pelo potencial mágico contido na Vontade, utilizada para qualquer ação real contra a Kali Yuga, que se mede a força com que essa idade será enfrentada, pois mediante a vontade mágica é que o mundo do ser se expressa vivamente e se sustenta como visão real do sagrado, recuperando os significados míticos, espirituais e transcendentes de toda a realidade e seus respectivos pontos de referência, antes nivelados pela expressão materializada da Idade Sombria. Quanto mais mágica, transcendente e hostil ao mundo sombrio da Kali Yuga for a Vontade, mais esta Era interrompe seu turbilhão descendente e recua.  
     Então, a vontade mágica é a variável que resolve a equação da restauração definitiva pela ascensão de um Ciclo Heroico. Ela é a própria força de reunião hierárquica do sagrado e transcendente com o contingente e humano, que estabelece o espírito guerreiro no ponto de tensão entre os dois mundos, fazendo destes um todo hierárquico: um Imperium.
     Uma vez assumida a Honra como virtude olímpica máxima e a ética guerreira, que dela naturalmente deriva, afirmada no Espírito, juntamente com uma Vontade inquebrantável, o Heroísmo em seu ato mágico descarrega então toda sua potência restauradora e torna-se ao mesmo tempo um mistério transcendente para toda e qualquer racionalidade, rompendo a cadeia causal rotineira de qualquer período decadente. Como mistério, o Heroísmo desperta as capacidades criativas e imaginativas do Espírito, e assume seu papel de força inspiradora carismática para outros previamente instalados em determinado grau de decadência e materialização.
     Encontrando-se já desperto, recuperado, respirando os eflúvios de mundos verdadeiros, resta ao Espírito orientar-se a medida que recupera suas propriedades mágicas. Este é o aspecto interior do Heroísmo.

O Heroísmo Interior e o Reerguimento Kshatrya
    
     É uma espécie de “fadiga de guerra” o que leva ao progressivo desaparecimento da essência mágica do Herói, e sua transformação em um mero agente de força a serviço de uma espiritualidade distinta de sua natureza. A queda do Espírito guerreiro no mundo lunar e servil e sua posterior materialização tem como condição inicial um domínio mágico já dissolvido ou inexistente, tanto pela transformação da Honra, a partir de seu estado mágico sagrado, a um mero valor moral de expressão social, como pelo aprisionamento da Vontade aos influxos emotivos, anímicos, racionais e materialistas emanados da alma e da religiosidade contemplativa. Neste estado de incapacidade ativa e de limitação olímpica o Espírito guerreiro torna-se desorientado frente a qualquer referência espiritual meramente reflexiva, e os conteúdos heroicos que carregava, na forma de um saber aristocrático ancestral, decaem inexoravelmente no fundo inconsciente e inerte da alma racional, numa obscura caverna interior psicológica.
     Assim, o Heroísmo interior do Kshatrya configura-se na reconstrução de sua esfera mágica e seu preenchimento com os conteúdos heroicos presos no inconsciente anímico por meio de sua recordação. Sair da caverna interior iluminando-a com a luz mágica em direção a um Espírito revigorado e combativo é o que se deve entender por uma restauração interior, a qual se concretiza quando o brilho não material da Magia, sua “luz negra”, atinge uma máxima intensidade.
     O reerguimento interior do Kshatrya e sua reconstrução enquanto casta, enquanto bando guerreiro, reunida sob a égide de uma visão de mundo superior e homérica, envolve, portanto, o recuo interior dos processos decadentes que refletem a Kali Yuga exterior, resignando e aniquilando as influências que determinaram o decaimento do Espírito Guerreiro no amor universal e posteriormente na matéria. E tal reerguimento, a bem que se diga, para que adquira a marca do verdadeiramente mágico, deve ser entendido como um movimento total, do interior mais profundo ao exterior mais degradado, ou seja, é uma ação interior que se passa inseparavelmente de um ato exterior, “o que ocorre dentro deve também ocorrer fora”. A exigência de um determinado título, ou grau espiritual expedido por uma autoridade sacerdotal ou organização responsável, como pré-requisito para que se atue, ou pior, como fim em si mesmo, é uma subversão passiva tipicamente oriental e lunar. O aspecto interior do Heroísmo é justamente a reestruturação das propriedades mágico-fantásticas do homem heroico que se dá de forma indissociável de uma ação exterior conjunta.
    Aniquilar os efeitos e estímulos anímicos, instintivos, sexuais e comportamentais materialistas deflagrados pela cultura mundial americanizada e coletivizada, encaminhará o Espírito em direção a uma visão de mundo mais sadia e orgânica, criando-se a possibilidade de que surja um ponto de referência de onde se possa enxergar o suprassensível sem a obscuridade cientificista ou teológica. Dando-se um passo adiante nessa trilha vertical, atingir-se-á um grau superior de recomposição ao se exaurir todo conteúdo sentimental, humanitário, pacifista e feminino que emana dos estratos anímicos do ser, ao mesmo tempo que se traz de volta os significados heroicos adormecidos de uma raça-espiritual própria como verdades irrefutáveis.
     Neste ponto, consequentemente já teremos uma certa manifestação ativa visível, na medida em que se expressa no homem em despertar uma certa postura inconformista, dissidente e revolucionária frente à civilização a qual ele se encontra. No nosso estágio atual da Kali Yuga esta postura leva a um profundo repúdio ao sistema político democrático e partidário, ao mito da vida segura e mesquinha, do valor sacralizado do trabalho e de toda expressão coletiva contida na vida em sociedade, ao amor universal pela usura, à exploração pelo capital e às mentiras da falsa elite que contra esse sistema finge lutar, assim como uma renúncia à formas insuficientes de pseudo-espiritualidades, religiosidades omissas e adesões religiosas promíscuas. Atingido este ponto já temos então sinais de um espírito revigorado e de uma postura heroica nascente. O Espírito herda da potencialidade mágica do guerreiro um determinado grau de hostilidade a tudo que seja signo de contingência, dessacralização e materialismo, portanto, uma postura inconformista e revolucionária que atinja o nível superior das verdades espirituais heroicas e que transceda as estruturas materiais do meramente humano em direção à Ancestralidade e ao Sagrado, já afirma uma trilha heroica real e uma consequente “faísca mágica” a queimar.
     As capacidades que a Magia dota ao Herói, reassumidas como tais, impelem este último inexoravelmente à ação, pois sua Vontade é irresistível. Contudo, antes que a experiência mágica determine a Vitória final da espiritualidade solar e heroica, que o princípio da ação seja ressacralizado como caminho transcendente ao sagrado e um novo Ciclo Heroico se concretize, uma última barreira exige ser ultrapassada, capaz de interromper toda caminhada heroica e, principalmente, de desviá-la até qualquer forma deturpada de ação interior e exterior. Daqueles que vencem e ultrapassam este limiar é que se forma a elite de liderança do novo ciclo. Esta barreira se forma a partir dos últimos resquícios existentes de uma linhagem espiritual diferente da do Herói, que lhe adormeceu na fadiga de guerra e que intentou transformá-lo numa “ovelha anímica”, que é precisamente a linhagem sacerdotal. São assim os fatores mais resistentes como o universalismo, a contemplação em forma de prisão doutrinal, a limitação religiosa, e a incapacidade de percepção mitológica interior e exterior, aqueles fatores que por último terão de ser superados pela Vontade Mágica, justamente aqueles que limitam o contato entre os dois mundos e que roubaram do Herói sua acepção sacralizada.
     O Espírito que se nutre das verdades contidas nas tradições lunares e sacerdotais é capaz de permanecer um certo período estável frente à onda decadente dos últimos tempos, contudo, como são verdades não-mágicas e não carregam a marca do Heroísmo, seu poder para refrear e controlar os estragos causados Kali Yuga é inexistente, ou seja, não determinam forças restauradoras. E, estando-se inserido numa Era de tamanha decadência e materialismo, permanecer estável um certo período é insuficiente, é entregar-se comodamente ao medo de lutar ou à esperança de ser salvo, é por fim trocar uma certeza heroica e viril pela relatividade e as dúvidas de uma vida a deriva numa teia de argumentos e justificativas dos mais diversos teores. Sem o objetivo irrevogável do retroceder da Idade de Ferro, ou seja, sem uma convicção heroica absoluta, qualquer ato tende a corromper-se. Esta é a ilusão final a qual o Kshatrya deve superar.
     Na eminência de superá-la, quando já está juramentada a escolha interior pelo caminho mais difícil, o guerreiro é então auxiliado por um aporte extra de Magia que provem da manifestação de um mistério sobrenatural e do qual acima citamos: o Graal.

O Graal e o Heroísmo

     Acima afirmamos que a hostilidade a toda forma de materialismo, contingência e promiscuidade, que brota das emanações mágicas do Herói manifesta-se na forma de uma força luminosa sobrenatural, uma “luz negra”. Aparte do aspecto paradoxal desta expressão – que, assim como todo paradoxo tende ao nível mitológico de significação e, portanto, exerce um certo magnetismo na alma heroica – ela nos serve para revelar o efeito sincrônico e iluminante da Magia e do Graal.  Num dos momentos de Parsifal, Eschenbach relata: “Satisfação perfeita de todos os desejos e paraíso, eis o Graal, a pedra da luz, perante a qual todo esplendor terreno nada é”.
     Como pedra, o Graal sustenta ainda as propriedades do simbolismo da eternidade e da imutabilidade.
     As virtudes elucidadas por Evola da Pedra Luciférica são verdadeiramente mágicas, místicas e sobrenaturais, por isso, onde seu brilho se faça visível a ordem de profunda confusão que a Kali Yuga construiu é dissolvida. O Graal é assim a pedra do furor guerreiro e a luz do Heroísmo.
     A virtude iluminante do Graal tem a propriedade orientadora, servindo como elemento a clarear a trilha a ser percorrida por aquela natureza guerreira superior, como uma espécie de farol transcendente. Atua num movimento sincrônico de forma complementar à Magia, despertando e potencializando suas capacidades, fazendo-a brilhar junto consigo. Aqueles que são capazes de melhor perceber a luz que flui do Graal, são também aqueles onde a Magia se faz mais presente, são os mais corajosos e nobres membros de toda uma linhagem de Kshatryas: são os aryas.
     Uma outra virtude mágica do Graal, além da iluminante, é seu poder de “alimentar” e dar “vida”. De tal capacidade deriva a superação de uma condição existencial da qual afirmamos acima ser aquela tipicamente de traço sacerdotal, precisamente a existência fincada na tendência à impessoalidade universal, determinada por uma inclinação devocional a uma realidade divina distante. A superação desta condição de relatividade, contingência e separatividade, que configuram a existência passiva em meio à substância rarefeita de Mâyâ (Schuon), como decorrência da nutrição provista pelo Graal de uma substância mágica vitalizadora, instala numa posição ontologicamente superior aquele que se nutre de tal “alimento”, exatamente a posição que caracteriza a realidade solar e dourada onde o mundo do ser e o do devir configuram-se hierarquicamente um sobre o outro na forma de um Imperium.
     Evola destaca ainda a virtude de renovação e regeneração, capacidade que possui o Graal que o liga ao mito da Fênix, a mística ave que ressurge das cinzas. Notadamente, este é um poder que se encontra em relação direta com qualquer ação transcendente de restauração, ou seja, com toda forma de Heroísmo. O Graal energiza o aspecto restaurador do ato heroico. Manifestada, a Pedra Luciférica infunde em qualquer processo de ação, guerra ou revolução, o princípio metafísico da Restauração Espiritual, o qual, por sua vez, clareia o sentido superior e espiritual da batalha assim como afasta as decisões e as posturas animalescas e o desespero caótico característico das plebes em eventos deste tipo, em suma, somente com a manifestação do Graal a Revolução é uma Restauração. Através desta virtude de regeneração é que entendemos o papel que o Graal desempenha na trilha que leva a um Ciclo Heroico. Sua manifestação é sincrônica com a ascensão do Heroísmo, estando este firmado em seus aspectos transcendentes e espirituais de uma linhagem tradicional cuja potencialidade imperial esteja ainda preservada.
     É por tudo isso que o Graal tem a capacidade de levar a um rompimento da última muralha inimiga que impede a vitória final do princípio solar do Heroísmo, barreira esta da qual acima falamos e que tem por última forma histórica nos povos indo-europeus a religiosidade cristã, mais precisamente aquilo que provém de seu núcleo semítico-oriental. O Graal incorpora nesta forma religiosa os conteúdos de um sentido mitologizado de vida, de realidade ressacralizada, conteúdos essencialmente olímpicos e propriamente pagãos, inscritos sobre a pedra incorruptível pela memória dos povos da raça-espiritual grego-romana e mais ainda hiperbórea. Ele atua assim resignando as propriedades passivas e decadentes contidas no Cristianismo, mas revigorando aquele seu ponto de referência cujo traço transcendente seja reconhecido, ou seja, o Graal transforma a religiosidade cristã em espiritualidade guerreira. Ademais, do sentido pela busca da Pedra Luciférica, como narrados em suas sagas heroicas, deriva a anulação da postura meramente contemplativa do sacerdote, de tal modo que até mesmo os ambientes doutrinais, filosóficos e culturais passam a refletir a aura mística que envolve sua procura.
     O mistério do Graal, o mistério do Heroísmo restaurador, há de manifestar-se sempre que um bando guerreiro desperte suas propriedades mágicas e juramente percorrer a trilha bélica rumo a um Ciclo Heroico erguendo um império de pura Honra e Vontade. Contudo, para ser erguido em sua máxima perfeição espiritual o Imperium clama pela manifestação da virtude mais superior do Graal: o dom da Vitória.

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