A concepção de Estado em Julius Evola - 2ª parte
por Cesar Ranquetat
A filosofia política de Julius Evola procura restaurar o poder e a autoridade do Estado, porém, cumpre ressaltar que o Estado tradicional é diametralmente oposto a qualquer forma de estatismo e totalitarismo. Evita intervenções abusivas e arbitrárias. Atua, principalmente, por influência espiritual, através de uma ação catalítica - “ação por prestígio”- segundo ensina Evola: “A imagem tradicional é de uma natural gravitação das partes e de unidades parciais ao redor de um centro de gravidade o qual manda sem constranger, atua por prestígio, por uma autoridade que pode, é verdade, recorrer à força, mas que se abstém o mais possível. O testemunho da força efetiva de um Estado é dada pela medida em que pode conceder uma parcial e racional descentralização. A ingerência sistemática estatista pode ser um princípio só no socialismo de Estado tecnocrático e materialista”. Em contraposição ao dirigismo pervasivo dos Estados totalitários, no Estado orgânico existe: “[...] tanto a unidade como a multiplicidade; há gradualidade; há hierarquia, não se encontra o binômio de um centro e de uma massa informe”.
Na verdade, o Estado totalitário é uma imagem deformada do ideal orgânico tradicional. O caráter orgânico, sobrenatural e universalista do Estado tradicional é substituído por uma concepção mecanicista, materialista e coletivista da organização política. Ancora-se - o Estado moderno - num poder meramente temporal e material. Procura obsessivamente tudo controlar e dirigir. É intolerante a qualquer modo de parcial autonomia e a qualquer liberdade. É movido por um mórbido desejo de tudo regulamentar e regrar, como um Estado pedagogo e assistencialista trata os indivíduos de uma comunidade como se todos fossem crianças pequenas e mimadas, carentes de qualquer capacidade de iniciativa própria. Caracteriza-se por constituir uma hipertrófica e teratológica estrutura burocrático-administrativa. Em seu afã intervencionista, o totalitarismo devasta e aniquila os corpos intermediários, os grupos orgânicos, assim como sufoca e enfraquece os valores da personalidade, da autêntica liberdade e da responsabilidade individual.
Conforme demonstrou Evola, o Estado intervencionista e dirigista - totalitário - é, em síntese, uma monstruosa escola de servilismo e conformismo, que tudo pretende uniformizar e massificar. Em antítese do que almejam as ideologias coletivistas e estatolátricas, que buscam fazer do homem uma mera unidade social inexpressiva, o pensamento tradicional e clássico concebe o homem ao mesmo tempo como uma unidade social, que, até certo ponto subordina-se ao todo coletivo e ao Estado, e, acima de tudo, como pessoa, uma realidade espiritual superior ao Estado e a qualquer espécie de entidade social.
Além disso, o ideal político tradicional rejeita, por completo, o populismo e o bonapartismo, regimes tirânicos e demagógicos, que, diga-se de passagem, pululam hoje na América Latina, como se pode notar com o enfadonho e já caricato socialismo bolivariano e demais delírios ideológicos protocomunistas. São regimes políticos encabeçados por “tribunos do povo”, tiranetes e ditadores populistas que apelam aos estratos “mais baixos” do ser humano. De acordo com Evola, nestes casos: “[...] o chefe se apresenta democraticamente como um ‘filho do povo’, e não como o tipo de uma mais desenvolvida humanidade e afirmador de um princípio superior”. São regimes “oclocráticos” e massificadores que, não obstante garantirem até certo ponto a elevação das condições econômicas e sociais da população, configuram-se como um fator regressivo em relação aos valores da personalidade. Neles o sujeito humano é diminuído e enfraquecido em sua liberdade interior, ou seja, na liberdade de si mesmo frente à parte inferior de si, parte que a atmosfera política e social de matizes igualitarista e coletivista faz emergir, adula e alimenta.
Para o filósofo da tradição, o economicismo - “o demonismo da economia”- é uma das principais patologias espirituais de nosso tempo. Este caracteriza-se, fundamentalmente, pela crença de que na vida individual e coletiva o fator econômico é o mais importante e decisivo. Essa fixação pelo econômico está presente igualmente no capitalismo liberal e no socialismo marxista, somente podendo ser superado por meio do restabelecimento da primazia da política e do Estado. Entendendo-se o Estado como a encarnação de uma ideia e de um poder que se coloca acima da esfera da economia, exercendo, dessa forma, uma necessária função normativa e fiscalizadora. Impedindo, assim, a “tirania do econômico” e o desenvolvimento de um capitalismo prevaricador e monopolista. Adverte Evola: “[...] até que ponto, em um determinado momento, como orientação justa não haveria que ser considerado o que pode ser chamado ‘imobilismo’ por quem confunde a estabilidade e um limite positivo com imobilidade e inércia, e não reconhece senão uma detenção, um freio na direção ‘horizontal’, no devir, da evolução no sentido material, técnico e econômico em processos que concluem com a perda do controle por parte do homem. Isto será sempre a condição para um progresso ou impulso no sentido vertical, para a realização das possibilidades superiores e da verdadeira autonomia da pessoa; enfim, querendo usar uma conhecida fórmula, para uma realização do ‘ser’ mais além do bem-estar”.
Os privilégios, direitos e conquistas econômico-sociais oferecidas pelo capitalismo liberal consumista, pelo Welfare State e pelo comunismo apelam, invariavelmente, para os aspectos inferiores do ser humano, basicamente para o elemento biológico e físico da individualidade. Oferecem os deleites e prazeres de uma vida cômoda e segura, um bem estar material de natureza bovina. De acordo com Evola: “[...] a elevação das condições sociais deve considerar-se, não como um bem, mas como um mal, quando seu preço signifique a submissão do sujeito ao mecanismo produtivo e ao conglomerado social; a degradação do Estado ao ‘Estado de trabalho’ e da sociedade à ‘sociedade de consumo’, a eliminação de toda hierarquia qualitativa, atrofia de toda capacidade ‘heroica’ no sentido mais vasto da palavra”.
Em síntese, numa sociedade política orientada por valores tradicionais, a busca da justiça jamais se resume na distribuição mais igualitária de bens materiais, conforme defendem ad nauseam os progressistas e socialistas de plantão, mas reveste-se de um sentido mais elevado, pois, trata-se, em primeiríssimo lugar, de estabelecer a ordem reta da alma e, assim, como consequência a ordem e a harmonia na vida social.
Evola demonstra com precisão e clareza o caráter subversivo do liberalismo e da democracia moderna. Na realidade, o liberalismo político e econômico sempre fora visto pelas “forças reacionárias e contra-revolucionárias” como uma ideologia antitradicional, pois o ponto de partida do ocaso das estruturas políticas e sociais tradicionais principia com o advento e o posterior predomínio das doutrinas liberais. Para o barão italiano, liberalismo, democracia, socialismo e comunismo são diferentes graus de um mesmo mal. Nesse sentido, um claro sintoma da confusão de ideias e valores é considerar como de direita indivíduos e grupos sociais que defendem o ideário liberal.
O liberalismo tende a rejeitar qualquer forma de autoridade e soberania. Com ele, o indivíduo rompe todos os vínculos e laços com os grupos orgânicos e com os valores tradicionais, erigindo-se à condição de uma entidade toda poderosa e soberana. O individualismo liberal converte o homem num átomo isolado, ao invés de parte de uma totalidade orgânica. Apregoa e defende o homem desenraizado, desprovido de qualquer relação com os múltiplos e variegados grupos históricos e orgânicos. Ora, o liberalismo perfilha uma noção equivocada da liberdade, conforme assegura Evola: “Afirma-se aquela má liberdade que destruirá todo o princípio de verdadeira autoridade, de modo a deixar as forças inferiores entregues a si próprias, e a fazer com que todas as formas políticas desçam ao plano meramente humano, econômico-social e coletivo, indo desembocar na onipotência dos mercadores e, a seguir, dos “trabalhadores organizados”.
Não obstante destacar alguns aspectos positivos do liberalismo inglês antigo, marcado por antecedentes feudais e aristocráticos, e por sua defesa da liberdade individual contra as intromissões indevidas do Estado na esfera privada, Evola chama a atenção para o fato de, a doutrina liberal, descuidar da diferença essencial entre a liberdade a respeito de algo e a liberdade para algo, ou seja, para fazer algo. Liberdade da pessoa para o exercício de um dever, de uma função em um ordenamento societal de tipo hierárquico. O liberalismo advoga, dessa maneira, a concepção de uma liberdade externa, esquecendo-se ou até mesmo ocultando que a verdadeira e autêntica liberdade é a liberdade interior. A liberdade do eu frente à parte puramente naturalista e biológica de seu ser.
Além disso, confunde a noção de indivíduo com o conceito de pessoa, reivindicando para o indivíduo valores, direitos e prerrogativas que só poderiam ser atribuídas à pessoa. Para o pensamento tradicional a pessoa é o indivíduo diferenciado através de uma qualidade, com um rosto e uma natureza própria. Ora, a pessoa não é um dado natural, um fato, é uma potencialidade. É, por conseguinte, uma tarefa a ser realizada e consolidada. Desse modo, ser pessoa, ou melhor, tornar-se uma pessoa, conquistar e construir uma personalidade não é uma qualidade uniformemente distribuída. Equivocadamente o liberalismo acredita que os indivíduos - todos os indivíduos indistintamente - já se encontram amadurecidos, evoluídos, realizados e conscientes de seus deveres e responsabilidades. Assevera, ainda, que de um estado de total liberdade para os indivíduos perseguirem a realização de seus interesses egoístas resultará espontânea e naturalmente um ordenamento social harmónico e sólido.
Cabe ressaltar, que a doutrina liberal parte de uma premissa igualitarista e niveladora consagrada na ideia do sufrágio universal, que reduz o indivíduo a um simples número - um homem um voto -, e a consequente noção da paridade de qualquer voto. No liberalismo político e econômico, homem é visto apenas em sua dimensão cívica e de consumidor. É, portanto, uma ideologia política que parte de uma concepção economicista, utilitária e individualista da ordem social.
Evola intenciona encontrar um ponto de equilíbrio nas relações entre o indivíduo e o Estado, bem como entre a liberdade e a autoridade, um dos problemas centrais da Ciência Política. Evita, assim, posições extremadas e unilaterais próprias do liberalismo individualista e do coletivismo socialista que, por um lado, tendem aos excessos de liberdade que levam à anarquia social e, por outro lado, ao desenvolvimento tumoral do poder estatal que conduz ao totalitarismo.
Por sua vez, a democracia moderna, dominante em nossa era crepuscular, na visão evoliana, não é apenas um sistema político, mas, sobretudo, uma forma de vida e um ethos corruptor e deformador que impulsiona e favorece o igualitarismo e a uniformização. É, em suma, o ‘reino da quantidade’ e do coletivo, das massas sem rosto, o império da “plebe” e de seus gostos e valores vulgares. Conforme Evola: “A democracia em sentido mais vasto implica não só a dissociação daquela síntese entre os dois princípios que definem toda organização superior, senão também a autonomização e o predomínio do elemento material – povo, massa, sociedade – até o qual agora se desloca o centro de gravidade”.
A democracia moderna não degrada apenas o povo tornando-o uma massa informe e facilmente manipulável, mas também corrompe as próprias classes políticas dirigentes. De acordo com o mestre tradicionalista: “[...] o sistema que se estabilizou no ocidente com o advento das democracias – o majoritário do sufrágio universal impõe de partida a degradação da classe dirigente. Com efeito, o maior número, livre de qualquer restrição e cláusula qualitativa, não pode senão estar ao lado dos estratos sociais mais baixos, e então, para granjear a simpatia de tais estratos e ser levado ao poder por seus votos, será sempre necessário falar a linguagem que, de maneira excludente, eles unicamente entendem, ou seja, por em primeiro plano seus interesses predominantes, que são naturalmente os mais grosseiros, materiais e ilusórios, prometendo sempre, sem exigir jamais. Assim, toda democracia é um escola de imoralidade, uma ofensa à dignidade e à capacidade interna que corresponde a uma verdadeira classe política”. O sistema político democrático estimula, inexoravelmente, o populismo e a demagogia, bem como a expansão do espírito de rebanho e de horda.
O liberalismo e a democracia são ideologias modernas, essencialmente, antitéticas à visão de mundo tradicional, aristocrática, hierárquica, antiburguesa e antiproletária. Sendo assim, de acordo com o filósofo da tradição, não há como reagir aos processos decadentes e degeneradores da sociedade moderna partindo de premissas próprias da cosmovisão burguesa, individualista, liberal e racionalista. A mentalidade burguesa, bem como a mentalidade proletária, precisam ser superadas, segundo assevera Evola: “Desprezamos o mito burguês da ‘seguridade’, da mesquinha vida estandardizada, conformista, domesticada e ‘moralizada’. Desprezamos o vínculo anódino próprio de todo sistema coletivista e mecanicista e de todas as ideologias que conferem aos ‘valores sociais’ primazia sobre os valores heróicos e espirituais, por meio dos quais se deve definir, para nós, em todos os domínios, o tipo de homem verdadeiro, da pessoa absoluta”.
O espírito burguês com a sua preocupação obsessiva e doentia pela segurança e pelo bem-estar físico, pela prosperidade material e a vida cômoda, deve ser ultrapassado. Em seu lugar urge formar uma nova mentalidade, um novo espírito marcado pelas virtudes marciais. Uma cosmovisão hierárquica e guerreira deverá dar o tom ao conjunto de uma organização política de caráter tradicional.
Consideração finais
O pensamento evoliano busca assentar as bases de uma “metafísica da política”, de uma espécie de metapolítica tradicional. Trata-se de uma metafísica prática e aplicada, é a política inspirada por valores, interesses e princípios superiores que, por seu turno, devem embasar a ação, uma ação que tenha um caráter retificador e ordenador diante da corrupção e da degradação da atividade política na modernidade.
Diante do avassalador caos social, político e moral da modernidade, Evola propõe uma recuperação do significado primacial e clássico da política. Sua obra é uma tentativa magistral de resgatar a visão perene da política como uma incessante e permanente busca da ordem, de uma ordem no campo da política que seja a representação da ordem cósmica e divina. Um esforço grandioso e audaz de restauração dos fundamentos e do sentido sacral e metafísico da mais arquitetônica das ciências, a ciência da política.
Sua filosofia política feérica é, acima de tudo, um ato de resistência interior à desordem social circundante. Uma chamando à regeneração espiritual e, assim, à luta pela ordenação da própria alma e pela retificação de um mundo mergulhado na barbárie e na confusão.